Confesse! Desde 17 de março, quando se registrou a primeira morte pelo novo coronavírus no Brasil, que o seu sono já não é mais o mesmo.
Afinal, nós, brasileiros, já levávamos a fama junto a comunidade científica internacional de sermos o povo com o terceiro pior sono do mundo. E, muito provavelmente, depois dessa pandemia já devemos estar disputando a medalha de ouro nesta malfadada modalidade.
Uma pesquisa realizada por estudantes da UFRGS, em parceria com a Fiocruz, uma universidade espanhola e uma canadense, mostrou em números o estrago causado no sono dos brasileiros: entre abril e maio, 50,3% dos brasileiros pesquisados perceberam alterações significativas na qualidade do sono, como insônia, além de sonhos estranhos e perturbadores.
De neurologistas a dentistas, todos concordam.
Componentes de natureza psicológica, como o medo, a angústia e ansiedade diante de um inimigo invisível certamente são os principais fatores que tem levado a colocar em xeque a qualidade do sono nesse período de isolamento social, como comenta outra especialista, a neurologista Dalva Poyares, médica pesquisadora do Instituto do Sono.
“Nosso sono é muito dependente de horários bem definidos e atividades rotineiras. Quando isso se perde, pode haver insônia ou outros distúrbios, especialmente em quem já tem alguma predisposição”, também explica Pedro Genta, pneumologista do Serviço de Medicina do Sono do HCor.
Até mesmo na odontologia vem se percebendo os efeitos da pandemia no sono do brasileiro. De acordo com a dentista Catarina Riva, devido ao estresse, os relatos de bruxismo tem aumentado em seu consultório.
Segundo ela, se estamos passando por algum tipo de problema familiar ou mesmo questões de trabalho, é comum que o bruxismo se intensifique, repassando a tensão emocional para os dentes em forma de aperto e desgastes, enquanto dormimos.
Um planeta inteiro dormindo mal.
Se servir de consolo, o problema não é só nosso: o sono do mundo inteiro também vem padecendo com o terror da Covid-19.
Estudos recentes realizados na França e nos Estados Unidos, mostraram que os índices de problemas de sono entre os franceses passou de 49% para 74%, enquanto que apenas 49% dos entrevistados norte-americanos declararam estar dormindo entre 7 e 8 horas pro noite, contra 54% antes da pandemia.
De acordo com um recente estudo publicado na revista Current Biology, passar mais tempo em casa devido aos bloqueios por coronavírus pode ter dado às pessoas mais tempo para dormir; mas esse sono não tem sido, de fato, repousante.
O estudo da Universidade de Basileia, na Suíça, examinou os padrões de sono em 435 pessoas durante a fase mais restrita do isolamento na Áustria, Alemanha e Suíça, e mostrou que os novos horários de home-office adicionavam uma média de 15 minutos de sono por noite.
No entanto, na amostra pesq uisada, a percepção é de que a qualidade geral do sono diminuiu, e acredita-se que o aumento substancial do estresse pode ter superado os efeitos benéficos de um sono mais prolongado.
Também os sul-africanos, declararam que a sensação de isolamento e o aumento da ansiedade afetaram seus padrões de sono.
Segundo a Fundação do Sono daquele país, milhões de pessoas já sofriam de insônia antes do coronavírus e a pandemia criou um grande número de novos desafios, mesmo para aqueles que não têm um histórico de padrões de sono interrompidos.
De acordo com os conselhos do professor Colin A. Espie, professor de medicina do sono na Universidade de Oxford, tudo se resume a uma sólida rotina de sono à noite e luz solar natural durante o dia para regular o nosso relógio biológico de 24 horas.
Segundo o mestre, “as pessoas estão ficando com menos luz do dia e não se levantando tão cedo. Essa perda de luz e mudança de hábito permite que o relógio biológico flutue e pode levar a uma sensação de mal-estar.”
Outro estudo recente, publicado em julho desse ano, observou 203 profissionais corporativos e 325 estudantes de graduação e pós-graduação na Índia. A pesquisa revelou que a interrupção da rotina da vida diária, ansiedade, isolamento, maior estresse relacionado à família e ao trabalho e tempo excessivo de uso de telas de celulares e computadores levaram a uma má qualidade do sono e sonolência diurna excessiva durante a pandemia.
Já em Portugal, o instituto de pesquisa Ipsos Apeme também realizou 400 entrevistas online junto da população geral, com idades entre os 18 e os 65, com o objetivo de perceber o padrão de sono durante a pandemia.
Segundo o estudo, um em cada quatro entrevistados manifestaram dificuldades em dormir, principalmente na faixa etária entre os 45 e os 54 anos. E 32% reclamaram da diminuição de qualidade do sono, especialmente as mulheres residentes na Grande Lisboa.
As maiores reclamações dizem respeito a não conseguir dormir uma noite inteira, dificuldade em retomar o sono em caso de interrupção e acordar cansado no dia seguinte; esta última atingindo cerca de 70% das mulheres com idade entre 18 e 24 anos.
Segundo os analistas, a maior incidência de problemas de sono no público feminino se deva, provavelmente, a problemas de saúde, preocupações, aumento de responsabilidades familiares e estresse.
Enquanto isso no Reino Unido, mulheres jovens e com problemas financeiros formam o público que mais tem sofrido com a falta de sono durante a pandemia.
O estudo foi realizado pela empresa de pesquisa de mercado Ipsos MORI e pelo King’s College London, com 2.254 pessoas entre16 e 75 anos.
Os pesquisadores disseram que a falta de sono pode ter impactado negativamente a capacidade das pessoas de serem resilientes durante a pandemia e que, mesmo que um quarto dos participantes relatem estarem dormindo mais do que o normal, nem sempre se sentem descansadas no dia seguinte.
De crianças a velhinhos, todos sentem.
Também na terra da rainha, a clínica de sono Millpond de Londres, identificou um aumento de 30% nas consultas de sono de crianças entre 5 e 13 anos, em comparação com os mesmos períodos de anos anteriores.
Uma pesquisa com 2.700 pessoas em abril já mostrava que 70% dessas crianças têm ido dormir mais tarde e dormem por mais tempo.
“Os pais acham difícil manter as crianças mais velhas ou adolescentes numa rotina, pois a tentação de ficar deitado é muito forte quando não se tem que ir à escola”, declara a fundadora da clínica, Mandy Gurney.
É o caso extremo da brasileira Diomara Cantesani, de 56 anos, com sua neta Isabella, de 5 anos, que simplesmente trocou a noite pelo dia, durante a quarentena. Enquanto a avó trabalha em home-office, ela dorme. E desperta no fim do dia cheia de energia, querendo brincar.
Na opinião da neurofisiologista e especialista em sono do Hospital Israelita Albert Einstein, Letícia Santoro Azevedo Soster, “perdemos a sincronização social, ou seja, o horário de dormir, de acordar, de sair, de tomar sol, de fazermos as refeições. Por isso, estamos indo dormir quando estamos cansados e não quando estamos tranquilos e de acordo com nosso relógio biológico.”
Já com os velhinhos americanos, os problemas de sono na pandemia não se devem a perda da rotina, mas sim ao sentimento de solidão.
Segundo estudo publicado pela Sleep Research Society, períodos de sono interrompidos e mais curtos têm sido atribuído pelos idosos em isolamento à falta de alguém com quem conviver. Ou pelo menos à falta de perspectiva de que isso volte a acontecer.
Voltando devagar para o novo normal do sono.
Mas e com a retomada gradual das empresas, comércios e escolas? Como voltar, sem sofrimento, a uma rotina mais regrada e com horários mais definidos para as atividades?
Antes de mais nada, não se culpe pela perda de ritmo e seja gentil com o seu corpo: vá adiantando o horário de acordar aos poucos. Se, por exemplo, durante o isolamento você acorda às 10h, mas antes da pandemia despertava às 7h, durante três ou quatro dias seguidos, programe-se para levantar às 9h30. Depois, por mais alguns dias, adiante mais meia hora e assim sucessivamente até voltar ao horário padrão. Os horários das refeições, bem como o preparo para ir dormir também devem seguir esta alteração, mantendo sempre uma regularidade.
A médica do Einstein também chama atenção para a importância da exposição à luz solar no período da manhã. “O contato dos olhos com a luz matutina faz o cérebro entender que é dia e ajuda na regulagem do relógio biológico”, diz.
E para o fim do dia, a dica é preparar o organismo para relaxar: diminua as luzes, reduza a exposição a telas de celular, TV ou tablets e evitar ações que estimulem sensações preocupantes. “Prefira consumir conteúdos mais tranquilos à noite para que o cérebro vá desligando aos poucos. Ninguém precisa ficar assistindo notícias repetidas seguidamente na hora de dormir”, aconselha a Dra. Letícia.
Essa “higiene do sono” funciona. Mas o resultado não é imediato: em média, são necessários de 15 a 21 dias para que o organismo se habitue ao “novo normal do sono”.